
Realização: Deusateu.com.br
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Prefácio
A poesia contemporânea nasce dos bueiros cheios d’água suja até o todo. Quem escreve sobrevive. Quem escreve à mão sobrevive. Quem pratica o devaneio não só como modo de escape consegue enxergar as gotas minúsculas da sujeira e fazer brotar o algo de bonito: esperança? Não sei.
Quem sou eu para saber?
A poesia é imagem, que vem de uma vez e precisa ser descrita.
Que vem aos poucos e precisa ser trabalhada.
Que vem aos montes e precisa ser es quar te JÁ da.
A poesia se faz sozinha? Fazemos sozinhos? Sozinhes? Sozinhxs?
A invenção das palavras tem muita força nesse século: isso porque as palavras as vezes não dão conta de absolutamente nada que se passa pela nossa mente conturbada, embebida de perguntas não-tão cristalinas – o sentido perdido e reexplorado do século que se degringola na política. Sim, escrever poesia é um ato político – mesmo que você não queira. Mesmo que seja invisível. Quem diz sobre o que é o poema é quem lê, não quem escreve.
Quem escreve só quer o alívio. Quem escreve só quer cessar, calar, curar algo que nasce na criança e toma vida quando aprende a b c d e f g h i j k l m n o p q r s tantas possibilidades…
Sujeito, objeto, predicado – importa?
Que tipo de arte é essa que precisa esburacar os milênios que se passaram para articular de forma clara – e às vezes não – o que queremos dizer? Tenho mais perguntas do que respostas.
Não acredito nas respostas. Acredito nas questões.
Leio para me questionar e escrevo para extraviar.
Faz sentido?
Passeios noturnos em paisagens tropicais berram palavras duras, pontiagudas, espessas e repentinas.
Palavras que não existem, palavras do passado, palavras escritas erradas. Existe errado?
Deve existir – não faríamos poesia se tudo estivesse certo.
Não é assim?
A poesia é uma revolta, vezes vermelha, vezes negra, vezes mulher, vezes travestida, vezes imaginária, vezes encostando por tempo demais no real.
Não sinto que é a fuga do real; sinto que é o encontro do real com o pensar da realidade, que pode ser a porta de saída a tantas perguntas impossíveis de serem respondidas, ou só o disparar técnico da vontade da vida.
Temos lido mais e mais: é para ir contra o imposto. Contra o terrível absurdo dos 280 toques. Somos forçados a articular: O que você está pensando agora? Trazer o pensamento para o concreto, desvincular – ou amarrar com aço – o som que sai da boca e que, antes, passa pelo cérebro e pela mão e pelo pé e pelo tronco e por dentro. Machuca. É o alívio que procuramos, é o incessante sanar e o imprescindível tentar.
Lia Petrelli
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DEMOCRACIAS POPULARES MISÉRIAS MUTANTIS
I
Depois do leilão do resto de nossos dias
Nenhuma alma terá direito a veto
Ao fim não haverá barqueiro que aceite nossas moedas
E nem nomeação que revogue o último suspiro
Nadaremos então no lago de lodo de cifras de um juiz resignado
Quando me afogar alcançarão minhas mãos estatizadas
outorgando o ultimo gesto de liberdade
– Com todas as forças eu imploro!
II
Julgavam os mortos estarem seguros de suas certezas
Jogando com as cartas dos burocratas
Sentindo o cheiro de ácido que vem das instituições
Ouvindo os segredos que governam em silêncio
Então percorri as cifras as leis e os jornais
Lutei com mil dragões autenticados
E depois mais cinco mil pigmeus regimentados
Corriam atrás de mim com suas canetas amarelas de sangue
Era pra ser apenas um voto
Mas o dono da voz se dissolveu na plateia do circo
Locutores bem perfumados nos convenceriam a desejar o delírio coletivo
Exigem que lhes permitam o sono dos acomodados
Enquanto um sangue negro segue a transbordar pelas ruas A janela não serve para nada
III
Vejo a massa da insurreição que marcha em agonia por um alvorecer translúcido.
Formigas operárias,
escravas em meio período
Depois da guilhotina corpos libertos
E a republica seguirá sua marcha sobre as nossa cabeças
Poderemos distinguir então de onde vêm as vozes que simulam a coerência
Disfarçados de luto entenderemos fingir a resignação dos desinformados
Os buracos do véu do tempo escoaram as areias do passado
Quando enfim alcançaremos o presente.
IV
Caindo na mentira de perpetuar
Esquecendo da miséria de ser alguém
As lagrimas de antes
Mesmo derramadas
Insistem em corações
Alexandre Gnipper
1986, São Paulo
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a mar, o mar ao mar
No intervalo das ondas segui o silêncio de suas pegadas na areia.
Te persegui até o abismo de meus olhos cansados do mundo.
Deixei a onda entrar para me afogar nas profundezas do destino
Na paisagem de um dilema reconheci a voz do desconhecido
Me atirei ao mar que estendeste diante de mim
Mas não há sede suficiente para matar meu infinito
Alexandre Gnipper
1986, São Paulo
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Os Belos
Queria antes os feios
que não andam por aí trajando verde e amarelo com seus narizes [empinados
que levam nos olhos a segurança daqueles que lidam com as [circunstâncias
Os belos
passeiam solitários em seus caiaques
E encontram prazer apenas no ócio abrasivo dos dias inúteis
Os feios te põem em alpendres sob as xícaras de chá
E cultuam com sinceridade como apoiará suas mãos na janela
Os feios
que se acuam pela calçada
Mas gritam
Queria antes os feios
orgulhosos e cheios de si
E os queria antes
porque carregam a exclusão em sua própria natureza
Na qual me reconheço
Brysa Delgatto Godoy
1991, São Paulo
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[ DEMÉTRIUS ]
Arlequim desenvolto
Esguio
Colorido.
Mostram-se as formas
os sentidos que não fazem sentido.
Gatos de cor púrpura
e olhos mandaláticos
feito fogos de artifício.
Observo à espreita
minha visão tangente.
A realidade é esotérica
pra toda a gente que brilha
Cintila.
Eu declamo meu corpo etéreo
A visão magnética
Meus pelos elétricos.
Meus pulmões jorram.
A visão é ums bengala
A cama é confortável,
detentora do meu corpo
e de possibilidades impossíveis
[ ah, essa high trip! ]
Os triângulos
Os íons.
As formas me formam.
O meu corpo que não é meu
Que não é, só está.
O êxtase que não é seu.
Isso tudo existe?
Com ou sem cristais derretendo
eu vou me submetendo ao que, de alguma forma, reconheço.
Sou um arlequim esguio.
Conto estórias
e lhe confidencio um sorriso vindo do fogo.
Meu corpo de peso orgásmico
Os dedos feito passeio de formigas.
Isso não é só mais uma high wave.
Carmem Guimarães
1997, São Paulo
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[ RÉU ]
Todo esse peso que sinto sob meu peito me lembra você.
Me sinto como uma pilha.
Sim, uma pilha
Que só funciona graças às suas polaridades
positiva e negativa.
Eu transmito tudo que posso
em velocidades absurdas
enquanto você percorre meu corpo
com uma energia que
hora me faz funcionar
e hora me suga a vitalidade por completo.
Você.
A corrente elétrica
que ilumina , que dá choque,
que ressuscita e também mata.
Minha natureza receptora.
Minha condenação.
Eu poderia culpar alguém,
Mas quem?
Eu poderia culpar os artistas
que dizem que a vida não é nada
Pertoda imensidão do amor de quem se ama.
Mas eu culpo à mim.
Eu me declaro culpada.
Por ver tanta beleza no que você é.
Por não dar o braço a torcer
e lhe pintar em meus quadros
Lhe citar em meus textos
Em me entregar à você
sem ter sido solicitada.
Eu me declaro culpada.
Quem mandou ter olhos tão gentis
A pele morena e quente como essa,
e então, ficar tão perto assim, do meu coração?
Cheguei na porta dele com uma mala pequena…
E a bagagem que tenho agora,
pesa mais que uma tonelada de flores.
Essa culpa ninguém nos tira.
A culpa de já ter amado.
A culpa de carregar uma cicatriz tão grande no peito.
Eu me cortei e assumi a posição de batalha que teu amor
me pedia.
Olhei meu peito aberto e te acolhi.
Me diga, querido, como sumir com isso?
A bagagem que a alma carrega é eterna
e você faz parte da minha.
Eu estou em cárcere
Dentro de mim
Carmem Guimarães
1997, São Paulo
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POEMA SEM CALÇAS
o poema entra na fila
paga os boletos
o poema recebe ordenado
termina o expediente
preenchendo relatórios
o poema com dor de barriga
usa o banheiro
entope o vaso
o poema
sem calças acabou de subir
as escadas
o poema assiste tv
na cozinha
passa a roupa
dos outros
o poema é normal
tem pressão alta
mas toma os remédios
o poema é comum
empurra pra sair
do ônibus
o poema esqueceu o aniversário
da filha
o poema
entrega currículos
na chuva
o poema não é especial
ele existe
o poema
é todo dia
ai do dote
ame o pó
Diego Alves
1981, Londrina
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……………………………..
a harmonia saiu
da atmosfera
como uma nave
em retirada
da oficina do invisível
planetariamente
que a estranheza
ocupou o lugar
a substituição
de uma força
pela outra
torna grosso o afeto
talvez se sangue
e hormônios corressem
como um lago invertido
pelas veias da presença
algo moveria
mas a esperança se desata
como a grande tristeza da grande alegria
a Terra como um flamingo
elegante e místico
sequer esticou o corpo no ar
nos preparamos desde sempre
para sermos a mão do coveiro
o martelo a multiplicar
o ódio na rocha
………………………………..
quem está pensando a derrota?
ou somos só
cavalos no cio
do ódio?
a morte se aproxima
do inimigo
e você comemora
nossas mãos
se esticam
para o futuro
ou para mais um brinde?
caberá entrelaçá-las
para que a história
se funde
não mais como tragédia
nem como farsa?
enquanto isso me pego
pensando naquela ideia
que parece título de mestrado:
a formação do afeto entre o fim das cartas de amor e o boom dos primeiros e-mails
…
Dyl Pires
1970, São Luís
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A sede
a sede que nasce da umidade do desejo
a sede crescente
da vontade
a sede do sentido imaginado
do quente da sua pele
da certeza do teu cheiro que é cheiro e que ferve
a sede do calor que não vem de fora
mas que preenche dentro
derrama
molha
mas não umedece
a sede trava o calendário
é urgente
vital desidrato sem teu corpo
e me babo de sede por tua falta
cinco dedos de sede
cinco dedos de falta
cinco dedos de espera
aguo todo dia
a sua espera
e não rimo o verso final
porque ele só rima
com seu nome
Flávia Andrade
1981, São Paulo
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
500 não tempos
estar sendo, ter sido
500 anos de calendário branco
tempo-colonia numa casa catequizados
incompreensão branca do Ser
da permanência com o absurdo da natureza
um respeito que o colonizador não abarca em sua lógica
negar o domínio do belo natural
aprender da vida que a indigência do ser não se remedia com autoridade
mas se mistura com respeito
a convivência que o colonizador não tem letra para ler
o belo natural que se funde na experiência da vida-permanência
de um Brasil que já existia antes do nome do colonizador
Batiza-lo
Sem autorização
Flávia Andrade
1981, São Paulo
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
Ter te conhecido
me trouxe o saber
que antipsicótico tem gosto doce
ter te conhecido
me fez deixar
a linha do 188 ocupada por horas
ter te conhecido
me trouxe um rastro perene de amargura
na caligrafia computadorizada destes versos
ter te conhecido
me trouxe medo de agulhas
medo de fazer análise e perder a inspiração
medo de não morrer
ter te conhecido
fez-me enxergar no real, que me preenche os olhos como a tinta-óleo preenche o quadro, a
completude do estrangeirismo
ter te conhecido
me fez ter o Absurdo como norte e Ideal
ter te conhecido
É o medo de sentir de novo irmandade
por qualquer outra coisa como gente.
Giuliano Lagonegro
1998, São Paulo
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
você levou suas roupas
e metade do meu vocabulário
certos universos lexicais
certos espaços semânticos
só serão permeáveis de novo
com a invenção da máquina do tempo
eu queria
te encontrar em um acaso incitado
eu queria
te espreitar
no decorrer de algumas estações
de metrô
assim o choque térmico
ao descer do vagão
seria aurático
um choque térmico semântico
da hipotermia das sílabas
e do estado febril da metáfora
eu queria
sentir o vão do pensar assêmico
e diluir em aguarrás
o tempo perdido
Giuliano Lagonegro
1998, São Paulo
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
Abandono
Sem sequer ser lembrada
Foi perdida nas leis do asfalto
Presa num corpo que não é meu
Queria era jogar tudo pro alto
Mulher de Pau Vista como tal
Consciente de que o mau
Não é seu pau
Revista como marginal
Presa no seu olhar visceral
E só na sua visão
É anormal
Encarcerada nas lembranças
De não ser tratada como igual
Teus vestidos e bonecas
Te fazem mulher igual
Lutar por respeito
E conseguir seu peito
Pra lembrar você
Que ainda tenho direitos
Chupar pau por comida
É isso que acha que é minha vida?
E meu andar na avenida
É só isso que faço na vida?
O objeto do teu desejo
Foi assim que consegui meu despejo
Sem família
Perdi meu anseio
A desgraçada
Que só queria ser amada
Como príncipe estava desabituada
Mas sendo princesa, isso sim te alegrava.
Guto Souza
1995, São Paulo
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
Para uma amiga
Despetalei os meus sonhos.
Balbuciei ao seu lado, cansado e confuso.
Abandonei minhas tentativas de sono, escrevi pensando em morrer.
Resplandecente e perdida, esperando qualquer rajada ligeira, sorrindo como se repousasse no céu. Lá estava você…
Emprestando qualquer movimento, orgulhosamente enfaixado, tentei enganar os meus tiques.
O álcool, santificado, amigo dos tímidos, abraçou-nos como um abandono.
O encontro de duas solidões perfeitas, o vestido alegre e o dia frio.
Os lábios congelados, se se tocassem, quebrariam o encanto platônico da vida,
enquanto o abraço me parecia um pedaço de eternidade.
Sussurrar e surrar minha saudade, abandonando minhas palavras no seu ouvido,
feriram sua sensibilidade.
Roubei o coração de uma moça alegre, porém, por medo ou remorso, o devolvi por inteiro.
Israel Alves
1993, São Paulo
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A sede
a sede que nasce da umidade do desejo
a sede crescente
da vontade
a sede do sentido imaginado
do quente da sua pele
da certeza do teu cheiro que é cheiro e que ferve
a sede do calor que não vem de fora
mas que preenche dentro
derrama
molha
mas não umedece
a sede trava o calendário
é urgente
vital desidrato sem teu corpo
e me babo de sede por tua falta
cinco dedos de sede
cinco dedos de falta
cinco dedos de espera
aguo todo dia
a sua espera
e não rimo o verso final
porque ele só rima
com seu nome
Flávia Andrade
1981, São Paulo
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500 não tempos
estar sendo, ter sido
500 anos de calendário branco
tempo-colonia numa casa catequizados
incompreensão branca do Ser
da permanência com o absurdo da natureza
um respeito que o colonizador não abarca em sua lógica
negar o domínio do belo natural
aprender da vida que a indigência do ser não se remedia com autoridade
mas se mistura com respeito
a convivência que o colonizador não tem letra para ler
o belo natural que se funde na experiência da vida-permanência
de um Brasil que já existia antes do nome do colonizador
Batiza-lo
Sem autorização
Flávia Andrade
1981, São Paulo
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Ter te conhecido
me trouxe o saber
que antipsicótico tem gosto doce
ter te conhecido
me fez deixar
a linha do 188 ocupada por horas
ter te conhecido
me trouxe um rastro perene de amargura
na caligrafia computadorizada destes versos
ter te conhecido
me trouxe medo de agulhas
medo de fazer análise e perder a inspiração
medo de não morrer
ter te conhecido
fez-me enxergar no real, que me preenche os olhos como a tinta-óleo preenche o quadro, a
completude do estrangeirismo
ter te conhecido
me fez ter o Absurdo como norte e Ideal
ter te conhecido
É o medo de sentir de novo irmandade
por qualquer outra coisa como gente.
Giuliano Lagonegro
1998, São Paulo
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você levou suas roupas
e metade do meu vocabulário
certos universos lexicais
certos espaços semânticos
só serão permeáveis de novo
com a invenção da máquina do tempo
eu queria
te encontrar em um acaso incitado
eu queria
te espreitar
no decorrer de algumas estações
de metrô
assim o choque térmico
ao descer do vagão
seria aurático
um choque térmico semântico
da hipotermia das sílabas
e do estado febril da metáfora
eu queria
sentir o vão do pensar assêmico
e diluir em aguarrás
o tempo perdido
Giuliano Lagonegro
1998, São Paulo
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Abandono
Sem sequer ser lembrada
Foi perdida nas leis do asfalto
Presa num corpo que não é meu
Queria era jogar tudo pro alto
Mulher de Pau Vista como tal
Consciente de que o mau
Não é seu pau
Revista como marginal
Presa no seu olhar visceral
E só na sua visão
É anormal
Encarcerada nas lembranças
De não ser tratada como igual
Teus vestidos e bonecas
Te fazem mulher igual
Lutar por respeito
E conseguir seu peito
Pra lembrar você
Que ainda tenho direitos
Chupar pau por comida
É isso que acha que é minha vida?
E meu andar na avenida
É só isso que faço na vida?
O objeto do teu desejo
Foi assim que consegui meu despejo
Sem família
Perdi meu anseio
A desgraçada
Que só queria ser amada
Como príncipe estava desabituada
Mas sendo princesa, isso sim te alegrava.
Guto Souza
1995, São Paulo
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Para uma amiga
Despetalei os meus sonhos.
Balbuciei ao seu lado, cansado e confuso.
Abandonei minhas tentativas de sono, escrevi pensando em morrer.
Resplandecente e perdida, esperando qualquer rajada ligeira, sorrindo como se repousasse no céu. Lá estava você…
Emprestando qualquer movimento, orgulhosamente enfaixado, tentei enganar os meus tiques.
O álcool, santificado, amigo dos tímidos, abraçou-nos como um abandono.
O encontro de duas solidões perfeitas, o vestido alegre e o dia frio.
Os lábios congelados, se se tocassem, quebrariam o encanto platônico da vida,
enquanto o abraço me parecia um pedaço de eternidade.
Sussurrar e surrar minha saudade, abandonando minhas palavras no seu ouvido,
feriram sua sensibilidade.
Roubei o coração de uma moça alegre, porém, por medo ou remorso, o devolvi por inteiro.
Israel Alves
1993, São Paulo
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O homem do saco
eu conheci o homem do saco
ele não roubava crianças
como eles diziam pra gente
o homem do saco juntava latinhas
pra poder alimentar os seus filhos
Israel Alves
1993, São Paulo
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EPÍLOGO
Me revesti de mãezinha solitária
cadelinha que perdeu sua cria
arrumei meus cabelos pro alto
cortei as unhas
gritei pela criança todas as noites e
ninguém respondeu de volta
brinquei de casinha lavei banheiro louça as roupas desbotadas
dei nome fiz promessa pedi perdão a deuses que nunca foram meus
me chamaram maria dos óvulos de ouro
me fizeram eva sem costela
eu gritei pelo marido cachorrinho todas as noites e
ninguém respondeu de volta
tentei cachaça corda cocaína corte fundo
uns mais outros menos
dei carinho fiz comida atravessei a cidade
fui casa colo coração
devoção pura e mordaz
fui mãe puta
mãe arrependida
mãe solitária
mãe tristinha:
mãe de quem?
meu nome é meu não é mãe
meu nome é deus não é meu
meu nome é mãe não é deus
meu nome é puta não é mãe
você gosta mais de mim sem a carapuça de mãezinha?
fico mais bonita?
mais feliz?
mais viva?
você gosta mais de mim com ou sem camisinha?
de tanto ser mãe arrependida solitária e tristinha
gritei pelo pai todas as noites
ninguém respondeu de volta
pai de quem
se não tem criança?
– é difícil ser uma pessoa coerente
me vestiram de maria madalena
costuraram a cruz na raiz da minha nuca e
aplaudiram meu desespero
talentosa bonita inteligente mãe de quem?
me disseram o que eu queria
o que eu sabia
o que eu podia
[e eu] cadelinha que perdeu sua cria
to prenha até agora esperando a barriga crescer
os líquidos escorrerem
a bosta cair do meio das minhas pernas e
feder feder e feder
meu nome é meu não é deus
meu ventre é um relicário inóspito
melhor assim
morreu antes de viver.
Layla Loli
1998, São Paulo
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FESTA
Damas da noite transcendentais
que noite fria
que riqueza de detalhes
o batom vermelho folheando os lábios das meninas que queremos beijar
nossos pés gelados tantos pés somos tantos corpos
suando frio pontas de cigarros pontas de dedos inquietos procurando
buracos úmidos quentes macios
da varanda me masturbo assistindo você fumar me flagro cercada por
rapazes tagarelas dentro de seus corpos fortes altos sempre maiores que eu
meu tesão sapateia como louco
quero chupar cada um dos dedos de cada uma das meninas os homens
se inclinam pra falar comigo acendem meu cigarro oferecem casacos xexelentos
sinto cheiro de queimado
tarde da noite na cozinha comeram o cu
daquela menina ela gozou tanto mas tanto mas tanto
saiu de lá sorrindo esbarrou em mim brilhando e correu correu e correu
tropeçou nos próprios dentes que riqueza de detalhes
um chiado estridente água e
avanço sobre o silêncio estarrecido dos homens enxergo
sobre o silêncio estarrecido dos homens:
nin.fe.ta
também aborta?
Layla Loli
1998, São Paulo
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São Paulo, não. Sim, São Paulo.
Não venha para São Paulo Todos aqui se vestem de escuro – se camuflam no cinza infinito e todos querem parecer felizes
Não venha para São Paulo
ninguém aqui valoriza o seu trabalho e todos os seus dias serão engolidos pela miséria da sobrevivência
Mas venha sim para São Paulo
Há tanta gente de tanto (todo) lugar!
Venha para São Paulo: todos os dias você pode escolher entre minhões de lugares para se entorpecer.
Venha para São Paulo!
Os Sescs todos são coloridos e a água é de graça!
Venha cá! Para São Paulo!
O tipo de amor que gera é infinito e você não terá problema em beijar alguém!
Não venha mais para São Paulo. Os amores todos estão corrompidos e na segunda semana o contato vai ser infinito – corre até risco de perseguição.
Mas, ora, venha para São Paulo – o centro está cheio de novas línguas e todas as tatuagens carregam aspas!
Quer saber! Não venha para São Paulo! O dia todo chove e a enchente engole nossos pés.
Venha sim para São Paulo
o metrô e os trens chegam em todos os condomínios com aluguel de 2.000 reais
Vem, vem, vem, vem, vem para São Paulo! As viagens de carro nem demoram tanto assim, na verdade é o trânsito que mata – mas dá pra apreciar a paisagem.
Não vem para São Paulo, não (esqueci de falar) que é o estresse que tá deixando todo mundo doente.
NÃO VEM PARA SÃO PAULO! Aqui o Corona Vírus já chegou e as Crianças brincam de sexo muito cedo.
Lia Petrelli
1996, São Paulo
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recado escrito à batom no espelho do closet
Quando for passar um lápis no olho, meditar sobre:
Uma vaidade que não venha dar às caras pelo apagamento dos defeitos
Que venha da exposição corajosa do que se é e do que não se sabe, em
contraposição à afirmação insegura e vacilante do que se gostaria de ser
Que não queira ser de superfícies, expressão inerte de um lago calmo, sem
linhas expressivas. Que seja da matéria impávida das ondas que se acomodam
ferozes no mar aberto – que seja para exaltar a força de vida do que é natural e
nunca para enjaular os traços livres em maquetes tediosas de um engenheiro
burguês
Que do frescor da manhã se adorne e seja uma vaidade desperta pela promessa das madrugadas
Que não faça elogios à infalibilidade, mas ao dobrar de joelhos que nos faz
humanos
E lembrar: A mulher fatal é letal para ela mesma
Luiza Gomes
1990, Rio de Janeiro
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Libre, tu
Somente pela liberdade somos seguros
A liberdade é a lei que nos afirma
e atesta a coerência de nossos princípios
Diante de abismos
No vazio, a garantia dos dias vividos
Nus, vividos
E à sós
Fácil aço e pluma
Plasmam o existente invisível da tua pele-membrana
A natureza da alma humana
E o caos ordenado do carbono
– que te reveste
E tudo está no imponderável de Deus
Luiza Gomes
1990, Rio de Janeiro
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quantas vezes é posível nascer numa mesma vida?
quantas vezes posso morrer sem que não me sobrem mais pedaços?
quantos remendos são possíveis de serem feitos num mesmo corpo?
qual peça é mais facilmente debilitada?
qual a mais essencial?
a manutenção, é facil?
e o custo benefício?
tem que perguntar né, a crise ta foda
ta todo mundo sendo afetado
todo mundo ta meio mal
Maria Sucar
2000, Rio Grande do Norte
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nao lembro mais como chorar
questiono a tal da “memoria muscular”
existe algum musculo responsavel pelo chorar?
questiono tambem minha vulnerabilidade
como doi escrever isso
questiono minha sanidade
como é gostoso estar escrevendo
ou melhor
como é gostoso sofrer e escrever sobre
como é gostoso sofrer
como é gostoso
gozei
Maria Sucar
2000, Rio Grande do Norte
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Depois de sonhar
não adianta
é um casal sem futuro
ela gosta de foder
ele gosta de beber
de conversar
de política
de escrever…
o lado ruim da história
é que ela gosta de foder com ele
e é assim que as palavras
adquirem acento e outras conotações
e podemos criar inúmeros enredos
para filmes, novelas e dramalhões
assim a alquimia se faz
a fantasia se desfaz e se refaz
fênix as palavras correm soltas
enquanto as pessoas seguem presas
entre belezas, delícias e sentimentos
onde pequenas nuances
provocam reações bruscas
e o prazer das linhas sujas
adquirem outras mediações
se o casal não tem futuro
a poesia abre as janelas para o infinito
e o ar da noite penetra no pequeno quarto
ah… o ar da noite…
o ar da noite é diferente…
mais suave, mais sedutor,
se vem unir-se uma música qualquer, aí então…
uma música qualquer não.
é preciso que seja aquela música!
aquela!
aquela que nunca mais tocou.
e uma lua no céu
para ludibriar o poeta
aquela lua que, na realidade, não está no céu
a lua é apenas citada, é preciso
pois a noite é de chuva
o quarto está vazio
o prazer está aqui
nas palavras que correm soltas
entre olhos que nunca vi
talvez olhos que nunca verei
mas cujos corações batem
para fazer correr o sangue vermelho
quente, vivo
salgado como as águas do mar
sintonizando olhares distantes
é
existem muitos mistérios
prontos para serem desvelados
basta ousar.
Miguel Vicentim
1962, Araras
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DA LIBERDADE
desejo
água e molhar a boca encontros com a lua satélites que a gente trepe sempre com mais vontade
espaço
muitos planetas olhar de dentro do foguete quando estou só ver estrelas inteiras brincando no quintal deleite
universo todo em partículas explode independente de mim o gosto de gozar olhando a sua cara
abismo
os filhos e todas as mães alimentados putas repletas fartas de seus donos e donas
do nariz do pó do mundo da alma da boceta do sangue de seus vira-latas passos são dados numa zona dentro
fora
da caixa do muro do soco de si do fuxico da cisma da ordem da neurose dos lobos
Thamíris Dias Gomes
1987, Bragança Paulista
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Posfácio
A poesia enquanto verso durante o incêndio – posfácio acerca do calibre desta Antologia…
O verso, quase sempre, interrompe o tempo comum e torna coletivo o tempo do sujeito. Por recontar o mundo, numa incessante luta para elaborar um objeto que dê conta da fissura racional da alma, a poesia funciona como refúgio e, ao mesmo tempo, ímpeto.
A poesia é um sujeito que medita ao centro de um incêndio sem saída, cujo único hidratante possível está em repetir, até o fim, constantes e complexas elaborações sobre as chamas e sobre o cozimento de si (enquanto a enunciação estética do mundo ao seu redor combate a fuligem do fogo indomável).
Não seria leviano dizer também que o transe criativo, que um poeta experimenta na hora do verso, é talvez, em sua forma mais aguda, a solidão positiva que faz com que a possibilidade do suicídio venham parecer uma emergência infantil, pois a imobilidade que as grandes emoções nos causam, na hora da arte, encontra sólida oposição na euforia que se ergue quando nos tornamos realizadores e senhores dos objetos artísticos que habitam o mundo nosso e do outro.
Escrever, quase sempre, é remédio.
A eficiência que buscamos em cada verso, por exigir sensibilidade, arquitetura e tempo, é, certamente, um dos maiores e mais eficazes ataques contra a desordem que a tristeza impõe contra a razão (quando perdemos o controle, porque a dor se impõe ao trâmite do cotidiano).
Nessa hora, a agilidade formal do verso integra não apenas o sentimento que busca se tornar exato, por meio da organização material do poema, mas também a expiação que está em cada possível “acidente” simbólico (implícito nas infinitas metáforas que podem surgir na hora do fluxo criativo, organizado e balizado pela mecânica material da poesia).
Ou seja, a busca arquitetônica do verso é também uma receita capaz de estabilizar o surto, a melancolia e a depressão (metaforicamente falando e sem qualquer intimidade com a dimensão clínica desses casos).
São justamente esses acidentes que nos fazem alcançar o êxtase da paz de nos sentirmos significados finalmente, e, ao mesmo tempo, lançados no desconhecido que não nos afeta mais, e sim, inaugura em nós outras e novas formas de sentirmos as variáveis desta vida incontrolável.
Sintetizar o sentimento é sofrer da ventura de, quem sabe, sentir além e, neste fluxo, organizar as influências que até então (des)significavam o sentido estético e sensível da vida.
Escrever poesia é a justa demanda da busca, e não só. É realizar também o gesto de, finalmente, reconhecer-se através e por meio da experiência e do experimento consigo.
Em poema publicado na obra Arô, do poeta e jornalista Guto Souza, há uma sequência de versos meus, em diálogo com os dele, que bem definem o que é poeta, e jamais o que seria “poesia”: nem mesmo um apaixonado/ poderia escrever poesia / caso não soubesse que o verso é / sempre mais complexo que uma cirurgia cardíaca.
Esta determinação técnica, que é o vetor obsessivo das obras que se fazem grandes obras, faz ebulir no sujeito uma série de sentimentos de existência que, sobretudo, o farão sofrer com maior soberania por meio de dores mais bem elaboradas e definidas, portanto, “próprias”, capazes de responder somente aos seus próprios mecanismos de realização da própria personalidade.
Uma Antologia de Poesia que busca não a semelhança geracional, mas certa intuição estética no embate contra o tempo que todos partilham (e que somente os artistas revisam) é, antes de um projeto de Beleza, um modo de perceber qual face diz o nome desta espécie e através de qual voz é que se diz este nome.
As dores e remédios aqui lançados para fazerem sol na zona escura do presente, numa curadoria quase desesperada por imprimir o RG coletivo deste tempo, buscam identificar qual a nossa identidade compartilhada e qual será a nossa intuição mais doída.
O século que se inicia, irremediavelmente maculado por tantas perguntas irrespondíveis e por tantos pactos que a Idade Média não deixará que o presente desfaça, é o único suporte que interessa ao percurso destas vozes que se propagam no ar…
Marcio Tito.